Aristóteles, citado várias vezes porque é o pai da cultura ocidental, sonhava: se cada ferramenta pudesse, a partir de uma ordem dada, trabalhar por conta própria, se os teares tecem sozinhos, se o arco tocasse sozinho nas cordas da cítara, então os empreendedores poderiam privar-se dos operários e os proprietários, dos escravos. Nunca, como hoje, estivemos tão perto da realização desse sonho: fábricas inteiramente informatizadas já estão em operação em ter dos cinco continentes. O mito de Sísifo pode finalmente ser reescrito.
Como se sabe, o herói grego foi punido pelos deuses por excesso de engenhosidade. Segundo a explicação clássica, tendo ele cometido um pecado intelectual, foi punido em compensação com uma pena material: transportar por toda a eternidade uma rocha até o topo de um monte e, quando ele precipitava de novo até a base, tornar a pegá-la e levá-la outra vez até o alto do monte. Em plena sociedade industrial, o escritor francês Albert Camus reinterpretou esse mito: sendo Sísifo um intelectual, o seu verdadeiro sofrimento não se consumava na subida, quando a sua mente estava toda ocupada pelo esforço sobre-humano de transportar a rocha até o topo. O seu verdadeiro sofrimento era quando, com a pedra mais uma vez no alto do monte, Sísifo tinha que descer a escarpada e, sem nenhum esforço, tinha toda a trágica consciência de ter sido condenado pela crueldade dos deuses a um trabalho inútil e sem esperança.
Para nós, homens pós-industriais, há uma terceira alternativa. Sísifo ao qual delegará a canseira do transporte inútil e banal e se sentará no alto do morro para contemplar o seu robô em função, saboreando enfim a felicidade do ócio prazeroso. (MASI, Domenico de. Em busca do ócio. In: Veja 25 anos: reflexões para o futuro. São Paulo: Abril, 1993, p. 48-9. Livro integrante Veja, 26 (38), 22 set. 1993.).
Texto II
Ciência, tecnologia, comunicação, ação à distância, princípio da linha de montagem: tudo isso tornou possível o Holocausto. A perseguição racial e o genocídio não foram uma invenção de nosso século e herdamos do passado o habito de brandir a ameaça de um complô judeu para desviar o descontentamento dos explorados. Mas o que torna tão terrível o genocídio nazista é que foi rápido, tecnologicamente eficaz e buscou o consenso servindo-se das comunicações de massa e do prestígio da ciência.
Foi fácil fazer passar por ciência uma teoria pseudocientífica, porque, num regime de separação dos saberes, o químico que aplicava os gases asfixiantes não julgava necessário ter opiniões sobre a antropologia física. O Holocausto foi possível porque se podia aceitá-lo e justificá-lo sem ver seus resultados. Além de um número, afinal restrito, de pessoas responsáveis e de executantes diretos (sádicos e loucos), milhões de outros puderam colaborar à distância, realizando cada qual um gesto que nada tinha de aterrador.
Assim, este século soube fazer do melhor de si e o pior de si. Tudo o que aconteceu de terrível a seguir não foi senão repetição, sem grande inovação.
O século do triunfo tecnológico foi também o da descoberta da fragilidade. Um moinho de vento podia ser reparado, mas o sistema do computador não tem defesa diante da má intenção de um garoto precoce. O século está estressado porque não sabe de quem se deve defender nem como: somos demasiado poderosos para poder evitar nossos inimigos. Encontramos o meio de eliminar a sujeira, mas não o de eliminar os resíduos. Porque a sujeira nascia da indigência, que podia ser reduzida, ao passo que os resíduos (inclusive os radioativos) nascem do bem estar que ninguém quer mais perder. Eis porque nosso século foi o da angústia e da utopia de curá-la. Com um superego mais forte, a humanidade se embaraça num mal que conhece perfeitamente, confessa-o em público, tenta purificações expiatórias às quais se juntam as igrejas e os governos e repete o mal porque ação a distância e linha de montagem impedem identificá-los no inicio do processo. Espaço, tempo, informação, crime, castigo, arrependimento, absolvição, indignação, esquecimento, descoberta, crítica; nascimento, longa vida, morte... tudo em altíssima velocidade. Um ritmo de stress. Nosso século e o do enfarte. (ECO, Umberto. Rápida Utopia. In: Veja 25 anos: reflexões para o futuro. São Paulo: Abril, 1993, p. 114-5. Livro integrante Veja, 26 (38), 22 set. 1993.).